O poeta é um fauno, um acontecimento, um correspondente de si mesmo
I
“Sou correspondente do meu sonho: /escrevo ao vivo e com meu corpo”, escreve Anízio Viana em “O tempo será amor”, um dos poemas deste livro, motivado por um réveillon no litoral do Espírito Santo, como o próprio autor informa: “Fui enviado a Vitória como correspondente de mim mesmo para cobrir a virada do ano na praia. Abraçava estranhos”.
“Escrevo ao Vivo” é um blog criado por Anízio em 2005, quando as principais redes sociais, hoje já incorporadas ao nosso cotidiano, davam os seus primeiros passos. Este livro é o resultado dessa iniciativa, na qual o poeta impôs-se o desafio de produzir um poema a cada semana, sempre motivado por um fato de destaque ligado a questões humanas e sociais. O resultado desse movimento (do fato observado pelo poeta, extraído de sua cena primária, até desembocar no poema) é o que Anizio chama de poemas-notícia e poemas-reportagem, num flerte ético-estético e permanente com as mais variadas formas de exclusão – social, racial etc. Nesse contexto, o poeta assumiu para si, com disciplina, a tarefa de produzir poemas a partir do notíciário ou de situações da vida: o estímulo do fato gerando a faísca da poesia. É, portanto, um poeta que não se intimidaria a repetir, como Balzac: “eu faço parte da oposição chamada vida”.
Ao olhar para a tradição, encontramos algumas referências importantes, como o “Poema tirado de uma notícia de jornal”, de Manuel Bandeira, publicado em 1930, no livro “Libertinagem”, mas que chegou aos leitores pela primeira vez em 1925, nas páginas do jornal carioca “A Noite”, bem como o “Poema do jornal”, publicado no livro de estreia de Carlos Drummond de Andrade, em 1930 – para citar os dos primeiros conhecidos, no país. De certo modo, é análogo ao que Moacyr Scliar empreendeu em “O Imaginário Cotidiano” (2001), crônicas baseadas em notícias publicadas na “Folha de S. Paulo”. Esses exercícios, no caso de um poeta, correm o risco de cair na vala do engajamento, mas, colocados na balança, o saldo é muito positivo em “Escrevo ao vivo”.
No trecho de um ensaio alheio sampleado para uma página deste livro, pode-se ler, em síntese, que o poema-reportagem é uma espécie de jogo entre a realidade exterior e a interior, com a ressalva de que a “realidade interiorizada que é sempre prévia à escrita do poema”. Com frequência, o poema é uma tensa mixagem entre reportagem e alucinação. Essa condição já se expressa em “Olho mágico”, poema de um dos primeiros livros de Anízio, “Itinerário do Amor Urbano”: “te juro como quem sabe o futuro /ou num furo de reportagem/ conheceu a bandidagem que se eu/ fosse até marte te traria uma pedra/ mágica que te daria boa sorte/…”.
Anízio Viana estreou na poesia com “Dublê de Anjo” (Mazza Edições, 1996, Prêmio Nacional de Literatura Cidade de Belo Horizonte), apresentando, já nesse primeiro trabalho, não só suas qualidades de letrista de música e estudioso da oralidade e da poesia falada – o que é facilmente perceptível em “Escrevo ao vivo” – bem como o diálogo com a poesia marginal e a poesia concreta. Daí, logo nesse livro inicial o poeta reconhecer, em seu trabalho, “ecos de Cazuza, Itamar Assumpção, Affonso Ávila, Bernardo Vilhena, Ana Cristina César, Sousândrade”. Só para citar uma das referências, a influência do grande poeta mineiro Affonso Ávila é notável em poemas como “O velho & o mar” e “Demy Moore”.
Da poesia ao jornalismo, do jornalismo à poesia. Essa via de mão dupla é sublinhada por um poema visual logo na abertura do livro, que, aqui reproduzido tipograficamente, assevera: “vida não tem rascunho e rasuro e rasuro e rasuro/ vida é só acúmulo e ajunto e ajunto e ajunto/ o rasuro o rascunho o acúmulo”.
A equação poética que Anízio parece propor – resultado da tensão permanente entre reportagem e alucinação – passa por esses três conceitos: rasura, rascunho e acúmulo. Pois escrever poesia talvez passe pela exigência de apagar (rascunho), para reescrever (rasura), para aprender e apreender (acúmulo).
II
O livro é dividido em duas partes. A primeira delas, homônima ao título, tem uma longa sequência de poemas, seguida da seção “Poemas-reportagem”. A segunda parte, “Aos que desejarem seguir viagem”, apresenta sete seções: “Poemas de metrô”, “Egocasting”, “Desditados”, “Odes femininas”, “Poemas de constatação da infância”, “Cursis Melodias” e “Ecos”.
“De notícias & não-notícias faz-se a crônica” é o título de um livro de Carlos Drummond de Andrade. Parafraseando o poeta, podemos afirmar que de notícias e não-notícias faz-se o poema. “Escrevo ao vivo” confirma que a poesia está em todo lugar: “Escrevo ao vivo da sacada da praia,/ do baile, do corredor do hospital,/ da avenida tomada, do aeroporto, rodoviária (…)” – como assinalam outros versos do já citado “O tempo será amor”.
Anízio retira do caos de cada dia e do turbilhão de informações uma pletora de fatos que se enquadram na “linha editorial” do projeto do poeta, para usar uma expressão cara aos jornalistas. Seus critérios de noticiabilidade indicam que foram selecionados, para a produção dos poemas, fatos que denotavam apelo, interesse e empatia, por exemplo, como se depreende dos acontecimentos que serviram de inspiração para os poemas: o surto da doença da vaca louca no Brasil, a mãe que abandona recém-nascido na Lagoa da Pampulha, bombas norte-americanas lançadas contra um templo no Oriente Médio, a morte de Oscar Niemeyer e as Olimpíadas de Pequim.
Outros fatos também provocaram o poeta: usuários de drogas na Cracolândia paulista, monges tibetanos que se auto-incendiaram para protestar contra políticas repressivas do governo chinês, a vaia aos cubanos do Programa Mais Médicos, o assassinato do garoto de dez anos no Complexo do Alemão, a Marcha das Margaridas – que representa a luta das mulheres do campo, a renúncia do presidente Hosni Mubarak depois da revolta popular no Egito, o arrastão feito por crianças e adolescentes em São Paulo, os imigrantes tentando chegar na Europa Ocidental. Em cada um dos poemas, Anízio “abraça estranhos”.
O verso que dá nome ao livro é repetido em outro poema, “Mensageiro terrestre”: “perdi a pressa de aprender a prece/ escrevo ao vivo”. É como se o poeta incluísse em seu projeto de lançar-se aos fatos a necessidade da fé – a fé na dúvida, a fé no vínculo, sempre possível, entre as pessoas, observando com agudeza um pêndulo entre o peso do corpo a leveza da fé.
Essa característica é perceptível em momentos como o poema “Sobrescrever”, que começa com uma declaração de princípios (“escrevo para não ser dissidente da vida/ escrevo porque logo ali há um outro:/ o ogro da infância o vizinho”) e termina acenando para a utopia: “para que o oásis seja corriqueiro/ & por instantes seja meu/ o poder de fazer mundos”.
O mesmo movimento de afeto comparece em outros poemas, como “Amar um Cão”: “tenho gula de vida/ por isso amar um cão/ como se ao amá-lo/ plantasse por inteiro/ minha melhor parte/ na dor do outro”. E conclui: “tenho gula de vida/ e amo seu resumo/ por isso amá-lo/ antecede tudo que não serve/ e é minha esperança crua”.
Contudo, “Escrevo ao vivo” não se limita apenas à tarefa, não sem atritos, das relações entre poesia e jornalismo. O poeta-jornalista (ou jornalista-poeta?) se permite colher do mar do cotidiano pequenas epifanias, como em “A Terra Vista do Espaço”:
ao ver azul a Terra
abandonou toda ciência
lembrou dos olhos de mãe
apenas
Ou, recorrendo a outro exemplo, “Avenida Pedro II”:
se eu falar mais alto que a linguagem
alcanço a liberdade e minha mãe
irá me ouvir
falo por amor à fala
e no meu inventário
constarão os travestis
Ou, ainda, nesse trecho de “Amar o canto”: “nu com minha música/ — a todo momento —/ não sou cidadão/ sou um fauno/ um acontecimento/”
De qualquer modo, o mergulho nos acontecimentos protagonizados pelos excluídos da sociedade faz com que o poeta acione a criação de versos doloridos, só possível para quem consegue transpor circunstâncias biográficas para a arquitetura do poema, sem com isso perder a força lírica. É o caso – apenas para citar alguns – de “Vilarinho”, “Meu primeiro amor”, “Sobre pais e ausências”, “À D. Eloiza” (homenagem à mãe do autor) e o admirável “Metildopa 500 mg”:
minha mãe depois
de tomar remédio
para pressão alta
fica encolhida no
sofá feito um gatinho
& paro por
aqui porque isto
já é todo o poema
III
O que transforma um fato em notícia? Para também tentar responder essa questão, “Escrevo ao vivo” mira nos acontecimentos que realmente importam, e acerta. Pois o poeta, como observa Affonso Romano de Sant’anna numa das epígrafes do livro, “é um jornalista da alma humana. Ele supera o cotidiano e fixa o essencial”. Por essa razão, pode o poeta dizer, em “Minha regra”: “assim deixo como está o poema/ que veio e me queimou à lenha/ de veio viga e veia espessa/ adorável e indomável letra/ um poema assim de solavanco/ lufada de vento ramalhete de espanto/ não escondo suas vergonhas/ e por isso eu o prefiro ao vento/e por isso eu o deixo nu”.
Pelas artes e manhas do poeta, este livro une, no mesmo corpo ou construto, a função utilitária da reportagem e a função poética de versos que só se completam no encontro com o leitor, como ressalta “Bookcrossing”:
Este livro relva
revolve lua & quermesse
& pede as ruas,
a carne das conversas,
a troca entre pessoas.
Fabrício Marques
Jornalista, escritor, editor do Suplemento Literário de Minas Gerais, autor de Uma Cidade se Inventa, Belo Horizonte na visão de seus escritores (Scriptum, 2015).